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O amor é um prédio

Cientificamente falando, não sabemos lidar com muitas opções. Não sou eu que digo, é a neurociência. O cardápio que fica à tua disposição é vasto e tu nunca escolhes.

A escolha, meus queridos, se tornou privilégio. Descobri isso dia desses.

Mentira, foi há uns 5 anos, quase. Mas descobri que a escolha certa tem um impacto grande. É compromisso grande. E quase ninguém tá preparado, ainda.

Quase ninguém tá preparado pro privilégio que é o amor. Privilégio cheio de trabalho.

Eu sempre achei que o amor fosse uma questão de humanas, mas é muito mais de exatas. Bem, eu entendi que é mais simples viver o amor quando a gente racionaliza ele. 


-É o que, pô?


-Calma, deixa eu explicar: tudo o que é simples dá trabalho. Já fizesse um slogan? Dá um trabalho do caralho colocar 3 palavras numa frase e o resultado ficar espetacular. É simples, e deu um trabalho danado.


-Fazer slogan é complexo e você sabe disso.


-Dá trabalho, mas o resultado é simples. Foque no resultado. O fato é que ninguém aceita que dá trabalho, e aí romantizam as situações. 


-Romantizam fazer slogan?


-Não, romantizam o amor. Quando a gente deixa as coisas mais práticas, funcionais e transparentes, o terreno fica fértil pro desenvolvimento de qualquer coisa. Pronto, pra fazer um slogan, você não espera a iluminação divina, você testa.


-Que nem no amor. A gente sai testando até conseguir a pessoa certa.


-É, talvez. Mas é diferente. Existe uma diferença entre sair jogando palavras soltas num papel e ter um motivo pra sair jogando as palavras soltas num papel.


-Tudo bem, continue.


-O problema é que a gente não sabe - e não quer - escolher o que dá trabalho.

Vejam bem, voltando pra questão do romantismo: ele não presta no longo prazo. Os lindos botões de flores que você recebe, murcham no outro dia. É fugaz. Embeleza e perfuma o espaço, mas vira lixo logo em seguida. E aí entra a história do funcionalismo.


-Não acredito que tu tá colocando produtividade no meio do rolê...


-Não é produtividade. É eficiência. As pessoas complicam relações que poderiam ser mais simples e transparentes. Ter um foco, um objetivo.


-Já tá racionalizando demais...


-Tudo na vida tem um objetivo. Até nossas escolhas emocionais - já que todas elas são emocionais - tem uma finalidade. O negócio é que raramente se verbaliza essa necessidade.


-Não tô entendendo.


-As pessoas poderiam ser mais sinceras. Acho engraçado que puta virou xingamento, só que é um trabalho até louvável. Nada mais é que uma troca clara por dinheiro. Hoje as pessoas ficam com medo de nomear os relacionamentos por medo de serem julgados, talvez? Eu acho que é por não saberem o que querem. E aí entra a questão da escolha. Que ninguém sabe escolher direito. E não está pronto para o privilégio nem para o trabalho que dá construir o amor. E essa palavrinha se torna algo inalcançável, justamente porque romantizam demais ela. Deveriam tratar o amor menos como uma flor que morre no outro dia e mais como um edifício.


-Como assim?


-Dá um trabalho da porra montar um prédio.


-E são muitas pessoas construindo.


-Sim, cada uma com um papel bem definido. Mas o fato é que um prédio lindo, que dura e que não desaba com qualquer vento, tem muita técnica envolvida.


-Peraí, o amor é um prédio?


-É.


-E precisa de técnica pra amar, é? Prooonto.


-É, bebê. Nem todo mundo sabe amar. Nem todo mundo tá preparado pra isso. Como nem todo mundo sabe construir prédio.


-E qual a faculdade do amor?


-Não tem. Nem tem prova. Mas tem uns indicadores-chave que fazem a pessoa saber que tá indo no caminho certo. Principalmente se for um relacionamento a dois, porque esses indicadores servem também pro amor próprio.


-Não acredito nisso, não. Tá de brincadeira né?


-Cuidado, admiração, respeito. Esses são os principais.


-Mas isso eu já sabia. 


-Mas quase ninguém coloca em prática. Você sabe, mas se seus níveis de cuidado, respeito e admiração estiverem em baixa, não tem santo no mundo que faça esse projeto dar certo. E no relacionamento de dois, os dois precisam estar equilibrados.


-E como vamos saber disso?


-Alinhamentos trimestrais.


-Puta merda, é sério isso?


-Tu já viu um projeto dar certo sem acompanhamento? Eu tô falando sério, dá trabalho. E por isso que eu digo: quase ninguém tá preparado.


-Você disse que era simples.


-Mas que também era trabalhoso. Construir um prédio, pra quem tá disposto a isso - ou seja, fez faculdade, cursos, se capacitou, foi atrás dos melhores... É simples. Tem um passo a passo pra ser feito. Obviamente a rotina demanda alguns desgastes, que dão trabalho. Mesma coisa nos relacionamentos. Se você fica esperando que o amor desabroche como um botão de rosa, boa sorte meu querido. É mais planejamento e ação do que forças do acaso.


-Então o amor é um prédio.


-É, um prédio.


-E fazer um prédio é simples?


-Ok, talvez não seja tão simples, não sou engenheiro. Mas é mais fácil construir um prédio do que gerenciar uma agência de publicidade.


-Qualquer coisa é menos complexa que isso.


-Então o amor é um prédio e pronto.

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