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Mostrando postagens de 2015

Notas de travesseiro

Falta ar. Não consigo respirar com as costas na cama. Viro-me de lado. Mudo a vista do ponto. Olho para cima: gesso, lâmpada, cortina. Acho que preciso de um novo travesseiro.  Sim, um novo travesseiro resolveria os problemas de um corpo meio proporcional. Um novo travesseiro seria bem acomodado no espaço retangular da cama. Não, um novo travesseiro só resolveria meus problemas com o pescoço. Na verdade, acho que nem isso.  Falta ar. Acho que todo poeta é teimoso o suficiente para ficar com as costas na cama. Duas vezes seguidas, falta ar. Viro-me de lado. Olho para dentro: acho que nosso problema não é no pescoço, mas no coração. Acho que todo poeta é teimoso o suficiente para ficar de costas para suas palavras. Nunca ama profundamente. Ama profusamente. Falta ar. 

Amor de Primavera

Pensei que poderíamos ser um amor de Primavera. Mas dessa vez o poder da mente fracassou. Ainda assim ela se lembra perfeitamente da sua feição e da sua camisa azul. Ela se lembra também do seu amigo meio exaltado, que não gostava de camisas em shows. Ela só não entende o porquê de nosso samba a dois não ter acontecido.  Estávamos sambando no centro da pista, perto do palco. Contemplei o sol do teu olhar, na certeza de um amor. Acreditei na ilusão de ter você pra mim. Você foi minha Anna Julia. O sol se pôs e Los Hermanos continuou a tocar. Num piscar de olhos você foi pro lado de lá e fiz de todo meu mar um grande cais, pra esperar sua volta.  Durante algum tempo fui condenada à condicional: presa pelo teu olhar, mas ainda assim em liberdade. Não sei mais o que fazer; vou apenas levando todo o amor do mundo, esperando você,  novamente, raiar. 

Cruzamentos

Nos encontramos por acaso. Um caso de meia tarde. Eu atravessei a rua, você dobrou a esquina. Nos falamos porque você era alto e eu usava tênis. Descobri que as pastilhas laranja costumam ser azedas. Você, com um jeito meio distraído, quase é atropelado quando atravessamos a outra rua. O cara da banca de revistas gritou “cuidado!”, mas não foi pra você. Você é do tipo de pessoa que anda quarteirões da sua casa até a casa do vizinho mais longe só pra jogar bola na frente do portão dos outros. Você não é daqui, por isso o cara da banca de revistas não gritou pra você. Talvez tenha até gritado, mas só porque você parecia ser um comprador em potencial. Atravessamos outra rua. Sorte a nossa estarmos indo na mesma direção. Te mostrei um texto meu. Você disse que era tão complicado quanto entender como é gostoso pão de queijo com chocolate quente. Ainda bem que você acha essa mistura gostosa. Descobri que as pastilhas vermelhas costumam ser enjoativas e que você gosta de dizer qu

#3 Rodrigo e Lúcia Maria

-Vó! Não se levante tão depressa! A senhora pode cair! -Cair o que, menino! Eu nunca caí na vida. -Vó, a senhora caiu duas vezes semana passada, só pela sua pressa. Vá com calma. -Estou calma. -E a senhora anda meio empenada também... -E eu sou mulher de andar empenada?! Me respeite, viu! Vou contar pra sua mãe. -Mas vó, até ela acha que a senhora anda meio empenada. -Que história é essa, menino? -Foi ela quem disse! -Isso é invenção sua. -É mesmo. Mas que a senhora anda meio empenada, anda... -Menino! Pare com isso! Ainda sou muito nova. -A senhora ainda se lembra do seu primeiro marido? -Claro que me lembro! -Noé o nome dele, né vó? Aquele da barca bem grande que tinha vários animais. -Olhe menino, você me respeite! Essa sua geração tá perdida... Meu Jesus amado...

Zona de conforto

Desço vinte andares. Bom dia ao porteiro. Atravesso a rua. Dobro a esquina. Bom dia ao policial. Seu Roberto está todos os dias - exceto às segundas - lendo o jornal numa das mesas de seu restaurante. Bom dia ao senhor Roberto. Atravesso a rua. Bom dia ao lavador de carros, que sempre me esqueço do nome. Atravesso a rua. Bom dia ao dono da banca de revista - chamo-o pelo seu apelido. Dobro a direita. Bom dia ao porteiro do clube. Sigo em linha reta. Bom dia ao salva-vidas, à senhora da biblioteca e ao faxineiro. Bom dia ao porteiro do outro lado do clube. O mesmo trajeto, as mesmas pessoas: todos os dias. Mas ainda não percorri nem metade do meu bairro. Uma dúzia de pessoas que vejo mais vezes por semana do que meus próprios parentes. A estabilidade da paisagem tornou-se quase como um retrato: imutável. As sensações são as mesmas e a constatação disso como algo conhecido é confortante. Não há chance de erro: o roteiro já foi traçado e percorrido várias vezes pela mesma p

Nosso roteiro ainda não terminou

Odeio ter que esperar você acabar seu trabalho para poder falar comigo. Odeio quando você diz que minhas coisas são de menininha. Odeio quando você some sem dizer mais nada. Mas ainda assim gosto de você.  Gosto quando você acaba o trabalho e então fala comigo. Gosto quando você lê meus textos e quando, mesmo reclamando do excesso de meiguice, ainda esboça um sorriso denunciando que ficou bom. Gosto de quando você reaparece depois de um tempo sem dizer nada e pergunta como vão as coisas no meu mundo: no mundo da Lua.  A vida é maldita. Acho que ela tem inveja do nosso constante emaranhado de encontros e desencontros: de algum jeito eles sempre dão certo. Acho que ela gosta das coisas erradas e por isso brinca com a nossa tranquilidade peculiar. O universo nos fez como água e vinho... Mal sabe ele que podemos nos misturar. 

Teimosia

Essa mania do coração de sempre querer se jogar num precipício ainda vai matá-lo de amores. Ontem mesmo o coração quase que envereda cego por um caminho não tão bem iluminado. Não foi por essa estrada, mas ficou sofrendo: em dor. Mal sabia ele que o caminho era mais sofrido: o coração corria atrás de um sentimento ainda frouxo, amador. Um sentimento ainda brincalhão, imaturo e carente de outras batidas cardíacas.  Estava com medo de percorrer esse caminho e não conseguir voltar. Ainda que soubesse do risco de acidentes durante o percurso, amarrou uma corda em alguns troncos de árvore e quis seguir, mas foi impedido pelo tamanho de sua corda: ela não esticava mais.  O coração, triste, sentou-se e pensou como seria o caminho. Desamarrou a corda do corpo e ainda quis seguir. Mas a visão do horizonte dava a impressão de um precipício que ele não fazia questão de se jogar. Mas sabia que se pulasse, suas batidas não seriam as mesmas, e o sentimento pelo qual ele corria atrás não valia e

Interlúdio

Entre duas tempestades há a calmaria.  É então que ocorrem as reconstruções,  as realizações,  as reaproximações,  as relações. Tudo parece começar a encontrar seu devido lugar,  sua forma inicial; antes do próximo caos.  Antes que as estruturas comecem a se abalar, prenda-se com cordas.  Cordas de violão. Toque quando a poeira estiver perto de ser levantada novamente: é um bom jeito de não perder o que é seu. Se não souber tocar,  prenda-se nas cordas da varanda, ou naquelas que ficam penduradas nas redes de pano. Veja o pôr e do nascer do sol: os interlúdios das mais belas melodias - a noite e o dia.  Existe esperança. Existe a segurança do momento presente: nada mais importa. Você  tem pressa?  Respire. Em algum lugar do mundo ainda não passou da meia noite.

Enrolação

Hugo, sinto lhe dizer que sorvete nunca será a melhor opção do cardápio. Você precisa ser assim, direto ao ponto. Ao contrário do que se pensa, a enrolação não é um dádiva: é uma arte. Ainda assim, não pense que você a domina muito bem... Hugo, sinto lhe dizer que felizmente não sofri durante uma semana para saber como foi sua quinta-feira. Sofri por menos de uma semana, como você bem sabe. Ainda assim, não pense que isso foi insuportável, foi apenas um exercício de paciência. Hugo, sinto lhe dizer que esse texto não é pra você. Não é nem mesmo para o pobre sorvete de morango desprezado no fundo do refrigerador. Não é nem mesmo para o cardápio no qual "sorvete de morango" esperava ser chamado por alguém. Esse texto é para o alguém que escolheu o sorvete de morango.  Hugo, sinto lhe dizer que você não saberá quem escolheu o sorvete de morango naquela sorveteria da esquina. Ainda assim saiba, como meu confidente, que me apaixonei por esse alguém que escolheu o sorvete co

A tal da emoção que se casou com a criatividade

Interessante é saber que muitos dos nossos textos escritos e divulgados e lidos e interpretados se parecem com as mensagens de um telefone sem fio. Sim, aquela brincadeira de criança. As emoções implantadas à força em cada palavra são sentidas de formas diferentes por cada leitor. Desse modo, alguns são tocados, outros dilacerados; mas poucos são os que seguem indiferentes. Vejamos: na frase "estou pronta para me jogar" algum suicida pode achar que é um sinal do universo. Por outro lado, uma menina que acaba de ter sua independência pode pegar seu carro novo, suas amigas, algum dinheiro, a estrada e se divertir com a vida. Assim também pode uma criança se abandonar nos braços de seu pai. Enquanto isso, o pobre escritor estava pensando na primeira gota de chuva que começou a encher os mares do planeta. Alguns sentidos são maiores que outros, porém todos convergem para algum. Isso é importante. Algo tão singelo para muitos é de grande tamanho para poucos, ou o contrário. I

Os males existem para algum bem

Nada é, inteiramente, ruim: em um mesmo caso dois lados podem ser observados. Muitas vezes, porém, a maldade é mantida como versão exclusiva. Dessa forma, acontecimentos são julgados pelos seus desdobramentos, e não pelas suas causas. Assim, a focalização das tragédias é feita na essência: o drama. Quantas vezes sabe-se de uma enchente que prejudicou o abastecimento elétrico de uma região e o primeiro pensamento foi acerca das perdas decorrentes disso? Ou algo mais devastador: quantas vezes se observa um atentado terrorista e julga-se, instantaneamente, como um ato incomparavelmente absurdo? Todavia, deve existir outro modo de pensar. As empresas especializadas no aluguel de geradores claramente se beneficiaram com a situação; do mesmo modo que fundamentalistas comemoraram por terem defendido o nome e a imagem de seu Profeta. É sabido que nenhum ato mortal é justificável. Com base nisso, pode-se dizer que alguns limites são necessários e a tolerância deve ser fundamental. Dessa fo

#2 Rodrigo e Lúcia Maria

-Menino! Olha a lua como está bonita! -É verdade vó, está linda! -Não sei como o homem ainda não teve vontade de visitá-la... -Mas ela já foi visitada, vó! -Foi mesmo? -Sim, em mil novecentos e alguma coisa... -Rapaz... Então quer dizer que um homem já pisou na lua? -Dois, na verdade. -E encontraram algo por lá? -Nada de mais... Apenas buracos, crateras e areia. Encontraram coisas mais interessantes em Marte. -Marte, Júpiter, Urano, Netuno e Saturno são o que? -Planetas, vó. -Ah, bem... -Eu vi um vídeo um dia desses que mostrava o tamanho de diversos planetas, desde um planeta bem pequeno até um bem grandão. Dentre eles estava o nosso; ele se mostrava muito pequeno... Como se um grão de farinha fosse a Terra e uma melancia fosse o maior do vídeo. -Nossa! -Pois é... Existem algumas pessoas que dizem que o universo é infinito. -Esquisito? -Não, vó: infinito. -Ah, bem... Então a Terra é muito pequena. -Pois é... Imagina como nós somos pequenos... -I