Pular para o conteúdo principal

Carta

Faz tempo que não falo com você. Há alguns dias eu estava em São Paulo, naquela correria que eu sempre estive metida, desde o ensino médio. Essa correria que me acompanha desde os tempos de "boy", como se diz aqui em Natal, entretanto, se intensificou bastante nos últimos meses. Mateus, lembra quando eu chegava na sala de aula de 7h da manhã cantando bom dia para o sol, para as paredes, para as cadeiras e para todo mundo que ainda estava dormindo? Eu não sabia de onde vinha aquela alegria, que mesmo na correria, fazia parte da minha rotina feliz.
Acho que talvez fosse por acordar todos os dias com o café já pronto, mesmo escutando dos meus tios que eu deveria acordar mais cedo pra fazer meu próprio café. Pois é, Mateus, hoje em dia estou acordando bem cedo mesmo. Acho que esqueci de contar: consegui o estágio que tava querendo! Mas estou acordando de 4:30h da manhã - e fazendo meu próprio café. Tô longe de casa, você sabe, e de uns tempos pra cá tudo parece pesar mais. 
Hoje não fui à missa. Mas domingo passado eu estava lá no mosteiro de São Bento, no centro de Sampa, num momento de céu com órgão e canto gregoriano. Você teria adorado! E sabe aquele menino que frequentava a mesma missa aqui perto de casa, e que começamos a namorar? Continuamos juntos. Você ia gostar dele, também. Ia dizer que a gente faz um bom casal. Sabe, Mateus, aquela minha ânsia por respostas permanece. E lembra daquela nossa conversa sobre casais? Às vezes o companheiro não chega com a solução pronta, mesmo. Mas isso é esperado, né? Imagina se ele sempre tivesse as respostas, e num determinado dia, não tivesse. A função do namoro é a companhia, a união e o apoio, como você sempre falou. É algo mais contínuo, equilibrado e sereno. Eu nunca entendi muito bem essa serenidade; hoje estou começando a entender.
Mateus, na maior livraria do país, dentre aquelas prateleiras grandonas e pessoas famintas por literaturas, pedi uma sugestão para voltar a ler. Sim, dei uma parada. Sei que você não acredita que parei de ler, mas por um tempo eu parei. A sugestão que recebi foi algo sobre leveza insustentável. Meio contraditório, né? Meio controverso; que nem as conversas e debates que a gente tinha nas aulas de religião. Controverso mas que até faz sentido, sabe? Faz sentido que na vida é preciso equilíbrio. Sinto falta das aulas de literatura (que eu sei que você odiava, mas também sei que você sabe que preenchia minha alma, e aí ficava feliz). Sinto falta também das vezes que faltava aula pra conversar com o Frei. A gente precisa sempre voltar pra casa né, Mateus? Aqui em Natal chove, aí em Recife também. Mas o frio nem é o mesmo. E amanhã o café não estará pronto na mesa. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Voo 3087

Finalmente usei minha mochila nova. Eu estava a ponto de ir na padaria comprar pão só para poder usá-la. Mas não fui à padaria, fui ao aeroporto. Antes de entrar no saguão de embarque tive que passar pelo raio x e abandonar minha mochila. Mas não estou aqui para falar dela, mas de uma senhora bastante comum. Entrei no avião e procurei minha poltrona rezando para que não ficasse espremida entre dois lutadores de MMA. Por sorte, sentei entre uma senhora e um senhor. Inicialmente,  pensei estar separando um casal, mas depois percebi que não estavam juntos. Pois bem, a senhora, que estava na poltrona da janela, tinha um ar de vó. Isso mesmo, um ar de vó. Antes da decolagem, pegou seu terço cor de rosa e começou a rezar baixinho. Não vou negar: achei que fosse daquelas católicas chatas que reclamariam da minha calça de fundo baixo e rasgada. O avião se estabilizou no ar, e a senhora do meu lado esquerdo me perguntou se teria algum jeito de usar o celular para ficar jogando. Isso mesmo,

Impunidade

Desperdiçam-se vidas. A morte é tolerada como mais um detalhe na grande malha colorida do carnaval. Na festa que tudo permite, as perdas são banalizadas, e os ganhos são contabilizados por beijos ou transas. A saúde se fantasia com preservativos; fronteiras entre a brincadeira e a seriedade são violadas, gerando a fragmentação dos valores éticos e sociais. Após quatorze anos de espera por um rim, uma mãe de família é privada de recebê-lo. E a causa não é a falta do órgão, mas de médicos dispostos a perderem um desfile das escolas de samba em troca de uma vida. Chamem os justiceiros. A moral foi mais uma vez corrompida. Todavia, os malfeitores não são ladrões de sucos ou de carteiras, são frequentadores de universidades, componentes da alta classe da sociedade brasileira. Os cidadãos se dizem cansados com a falta de respeito do governo. Na tentativa de curar um câncer político, mutilam órgãos e células que não passam de vítimas da doença há muito impregnada no corpo social. Os cér

Os males existem para algum bem

Nada é, inteiramente, ruim: em um mesmo caso dois lados podem ser observados. Muitas vezes, porém, a maldade é mantida como versão exclusiva. Dessa forma, acontecimentos são julgados pelos seus desdobramentos, e não pelas suas causas. Assim, a focalização das tragédias é feita na essência: o drama. Quantas vezes sabe-se de uma enchente que prejudicou o abastecimento elétrico de uma região e o primeiro pensamento foi acerca das perdas decorrentes disso? Ou algo mais devastador: quantas vezes se observa um atentado terrorista e julga-se, instantaneamente, como um ato incomparavelmente absurdo? Todavia, deve existir outro modo de pensar. As empresas especializadas no aluguel de geradores claramente se beneficiaram com a situação; do mesmo modo que fundamentalistas comemoraram por terem defendido o nome e a imagem de seu Profeta. É sabido que nenhum ato mortal é justificável. Com base nisso, pode-se dizer que alguns limites são necessários e a tolerância deve ser fundamental. Dessa fo