Pular para o conteúdo principal

Zona de conforto

Desço vinte andares. Bom dia ao porteiro. Atravesso a rua. Dobro a esquina. Bom dia ao policial. Seu Roberto está todos os dias - exceto às segundas - lendo o jornal numa das mesas de seu restaurante. Bom dia ao senhor Roberto. Atravesso a rua. Bom dia ao lavador de carros, que sempre me esqueço do nome. Atravesso a rua. Bom dia ao dono da banca de revista - chamo-o pelo seu apelido. Dobro a direita. Bom dia ao porteiro do clube. Sigo em linha reta. Bom dia ao salva-vidas, à senhora da biblioteca e ao faxineiro. Bom dia ao porteiro do outro lado do clube.
O mesmo trajeto, as mesmas pessoas: todos os dias. Mas ainda não percorri nem metade do meu bairro. Uma dúzia de pessoas que vejo mais vezes por semana do que meus próprios parentes. A estabilidade da paisagem tornou-se quase como um retrato: imutável. As sensações são as mesmas e a constatação disso como algo conhecido é confortante. Não há chance de erro: o roteiro já foi traçado e percorrido várias vezes pela mesma pessoa.
Quando novas propostas surgem, o medo toma conta e bloqueia as opções de aderência. Tudo que se conhece transforma-se numa rocha bruta em meio às escorregadias oportunidades. Entretanto, existe a vontade pelo novo. Existe um fio de coragem que se ergue com esforço para não deslizar. Mas é sucumbido pela necessidade da inércia; pois esse é o jeito mais confortável de manter-se num pseudo estado de movimento em que não se acelera nem se retarda: falta a intenção de agir.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Voo 3087

Finalmente usei minha mochila nova. Eu estava a ponto de ir na padaria comprar pão só para poder usá-la. Mas não fui à padaria, fui ao aeroporto. Antes de entrar no saguão de embarque tive que passar pelo raio x e abandonar minha mochila. Mas não estou aqui para falar dela, mas de uma senhora bastante comum. Entrei no avião e procurei minha poltrona rezando para que não ficasse espremida entre dois lutadores de MMA. Por sorte, sentei entre uma senhora e um senhor. Inicialmente,  pensei estar separando um casal, mas depois percebi que não estavam juntos. Pois bem, a senhora, que estava na poltrona da janela, tinha um ar de vó. Isso mesmo, um ar de vó. Antes da decolagem, pegou seu terço cor de rosa e começou a rezar baixinho. Não vou negar: achei que fosse daquelas católicas chatas que reclamariam da minha calça de fundo baixo e rasgada. O avião se estabilizou no ar, e a senhora do meu lado esquerdo me perguntou se teria algum jeito de usar o celular para ficar jogando. Isso mesmo,

Impunidade

Desperdiçam-se vidas. A morte é tolerada como mais um detalhe na grande malha colorida do carnaval. Na festa que tudo permite, as perdas são banalizadas, e os ganhos são contabilizados por beijos ou transas. A saúde se fantasia com preservativos; fronteiras entre a brincadeira e a seriedade são violadas, gerando a fragmentação dos valores éticos e sociais. Após quatorze anos de espera por um rim, uma mãe de família é privada de recebê-lo. E a causa não é a falta do órgão, mas de médicos dispostos a perderem um desfile das escolas de samba em troca de uma vida. Chamem os justiceiros. A moral foi mais uma vez corrompida. Todavia, os malfeitores não são ladrões de sucos ou de carteiras, são frequentadores de universidades, componentes da alta classe da sociedade brasileira. Os cidadãos se dizem cansados com a falta de respeito do governo. Na tentativa de curar um câncer político, mutilam órgãos e células que não passam de vítimas da doença há muito impregnada no corpo social. Os cér

Os males existem para algum bem

Nada é, inteiramente, ruim: em um mesmo caso dois lados podem ser observados. Muitas vezes, porém, a maldade é mantida como versão exclusiva. Dessa forma, acontecimentos são julgados pelos seus desdobramentos, e não pelas suas causas. Assim, a focalização das tragédias é feita na essência: o drama. Quantas vezes sabe-se de uma enchente que prejudicou o abastecimento elétrico de uma região e o primeiro pensamento foi acerca das perdas decorrentes disso? Ou algo mais devastador: quantas vezes se observa um atentado terrorista e julga-se, instantaneamente, como um ato incomparavelmente absurdo? Todavia, deve existir outro modo de pensar. As empresas especializadas no aluguel de geradores claramente se beneficiaram com a situação; do mesmo modo que fundamentalistas comemoraram por terem defendido o nome e a imagem de seu Profeta. É sabido que nenhum ato mortal é justificável. Com base nisso, pode-se dizer que alguns limites são necessários e a tolerância deve ser fundamental. Dessa fo