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Zona de conforto

Desço vinte andares. Bom dia ao porteiro. Atravesso a rua. Dobro a esquina. Bom dia ao policial. Seu Roberto está todos os dias - exceto às segundas - lendo o jornal numa das mesas de seu restaurante. Bom dia ao senhor Roberto. Atravesso a rua. Bom dia ao lavador de carros, que sempre me esqueço do nome. Atravesso a rua. Bom dia ao dono da banca de revista - chamo-o pelo seu apelido. Dobro a direita. Bom dia ao porteiro do clube. Sigo em linha reta. Bom dia ao salva-vidas, à senhora da biblioteca e ao faxineiro. Bom dia ao porteiro do outro lado do clube.
O mesmo trajeto, as mesmas pessoas: todos os dias. Mas ainda não percorri nem metade do meu bairro. Uma dúzia de pessoas que vejo mais vezes por semana do que meus próprios parentes. A estabilidade da paisagem tornou-se quase como um retrato: imutável. As sensações são as mesmas e a constatação disso como algo conhecido é confortante. Não há chance de erro: o roteiro já foi traçado e percorrido várias vezes pela mesma pessoa.
Quando novas propostas surgem, o medo toma conta e bloqueia as opções de aderência. Tudo que se conhece transforma-se numa rocha bruta em meio às escorregadias oportunidades. Entretanto, existe a vontade pelo novo. Existe um fio de coragem que se ergue com esforço para não deslizar. Mas é sucumbido pela necessidade da inércia; pois esse é o jeito mais confortável de manter-se num pseudo estado de movimento em que não se acelera nem se retarda: falta a intenção de agir.

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